As "desaprendizagens" do professor
Julio César Furtado Dos Santos
As ações de nós professores em sala de aula baseiam-se, há séculos, em crenças fortemente sedimentadas. Essas crenças alimentam o que podemos chamar "hábitos de resistência" a uma mudança mais profunda em nosso fazer. Tal resistência nada mais é do que o sinal claro de que não sabemos outra forma de caminhar. Temos que desaprender.
As desaprendizagens de hábitos, há muitos séculos enraizados por parte do professor, passam, necessariamente, pela mudança das crenças limitantes que alimentam "tais raízes". Observando-se a ação do professor em sala de aula percebe-se a necessidade urgente da desaprendizagem dos seguintes hábitos:
Ensinar é falar
- O hábito: A linguagem oral sempre foi o principal meio de comunicação entre os homens. A oratória sempre foi o nosso principal meio de ensinar. Desde a Antigüidade, falar sempre foi a forma mais contemplada de ensinar.
- A crença: O professor que melhor fala é o que melhor ensina. Ensinar talvez possa ser reduzido ao "bem falar". Aprende-se, principalmente, através do ouvir. O que é ouvido não precisa, necessariamente, ser processado, mas "absorvido", "gravado". Todas as pessoas absorvem bem o que ouvem e todos têm a audição como canal preferencial de aprendizagem.
- A reaprendizagem: Aprender, a partir da ação, do exemplo, é muito mais significativo do que aprender a partir do discurso. O que é ouvido precisa ser processado, refletido, sintetizado e ganhar sentido no contexto mental de quem ouve. As pessoas não ouvem as mesmas coisas. O que é ouvido é contaminado pela maneira de ver o mundo de cada um, que é fruto da história de vida. Nem todos elegem a audição como seu canal preferencial de aprendizagem. A maioria das pessoas é visual, ou seja, as imagens são essenciais para seu processo de aprender. Outras aprendem melhor através dos sentidos. Essas precisam experimentar para aprender.
Professor fala e aluno ouve
- O hábito: Normalmente, a fala, em sala de aula se estabelece em via de mão única. O diálogo não é prática comum no processo de aprendizagem. Ficamos, às vezes, aborrecidos quando o aluno fala na nossa hora de falar.
- A crença: A aprendizagem é tão maior, quanto mais atenciosamente os alunos ouvem o que o professor fala. Tomar nota do que ouve aumenta a possibilidade de "aprender". O silêncio favorece aprender a partir do que é ouvido. Só é possível aprender, quando quem ensina está em posição ativa (o que fala) e quem aprende está em posição passiva (o que ouve). Falas paralelas atrapalham o processo de aprendizagem. O aluno não tem nada a dizer a respeito do que está sendo falado.
- A reaprendizagem: A aprendizagem não ocorre, necessariamente em relação direta com a passividade. O diálogo, a discussão, ao longo da exposição de temas, intensifica a aprendizagem. O aluno pode ter muito a dizer sobre o que está sendo exposto e esse conteúdo pode ser enriquecedor para o grupo, inclusive para o professor.
Aprender é reproduzir
- O hábito: A reprodução do que foi ensinado é a demonstração de que houve aprendizagem. Propomos aos alunos muito mais atividades que privilegiam a reprodução do que foi ensinado do que a produção, a partir do que foi aprendido.
- A crença: Aprender é reproduzir o que está pronto. Aprendizagem não é processo pessoal, que sofre adequação, reconfiguração. É, sim, processo mecanicista de apreender o mundo tal qual ele é e está, de forma homogênea. O conhecimento não é construído ou reconstruído, mas sim absorvido, apreendido.
- A reaprendizagem: Aprender é processo produtivo, pessoal e reconfigurativo. A objetividade do conhecimento é um mito. Conhece-se de forma subjetiva, interativa e reconstrutiva. O mundo não pode ser apreendido de forma homogênea. A apreensão do mundo se dá a partir dos olhares que lançamos para ele. Esses olhares são temperados por nossas crenças, valores e expectativas.
Errar é o contrário de acertar
- O hábito: Quando um aluno erra um exercício é porque ele não aprendeu. Apontamos o erro para que ele possa repetir até que "acerte", ou seja, até que ele chegue à resposta esperada. Quando um aluno acerta freqüentemente significa boa aprendizagem. Somente o acerto deve ser validado, pois somente quando acertamos, demonstramos que aprendemos.
- A crença: Quando se aprende não se erra. Quando ocorre o erro é porque não houve aprendizagem. Somente acertos traduzem sucesso. Somente acertos são produtivos. O erro deve ser eliminado. O erro é sempre indesejável. O erro é inútil. É impossível acertar, errando. Erro e acerto são dimensões mutuamente excludentes. Erro é ausência de aprendizagem.
- A reaprendizagem: Se aprender é processo predominantemente produtivo, a experimentação ganha imensa importância nesse ato. O ato de experimentar engloba naturalmente o erro. Fala-se aqui, do erro produtivo. Referimo-nos ao erro que possibilita aprendizagem. O erro que nos facilita achar o caminho do acerto. Logo, o erro pode, também, levar ao sucesso e ser produtivo. O erro é importante e parte integrante do processo de aprender e, de certa forma, é desejável para que o acerto seja construído. O acerto antecedido de erros se configura de maneira mais sedimentada e consistente. Erro e acerto são dimensões não excludentes do processo de aprender.
Bom aluno é aluno obediente
- O hábito: Valorizamos excessivamente a obediência no processo de classificação do bom aluno. Parece-nos pré-requisito essencial do mesmo. Geralmente punimos o aluno que não "faz como dissemos para ser feito". Lançamos para este um olhar de reprovação e sentimo-nos ultrajados, desobedecidos, desrespeitados. A partir desse hábito, altamente comum na prática docente, proibimos o aluno de nos contradizer, complementar ou até mesmo desafiar. Rotulamos de "chato" o aluno que insiste em se comportar dessa forma "desobediente".
- A crença: A postura do aluno para com o professor deve ser sempre a de obediência. O aluno deve fazer, sem questionar, tudo o que o professor ordenar. Desobedecer é sinal de indolência, desacato. A verdade é exclusividade do professor, logo, o papel do aluno é sempre o de obedecer ao professor. Obedecer sempre ao professor leva o aluno a aprender mais e melhor. O aluno é vazio, logo, não pode ter iniciativa própria.
- A reaprendizagem: Desobedecer não é sinônimo de desacatar. O desacato fica por conta do nosso olhar. Desobedecer significa não seguir as regras impostas; significa ousar, quebrar uma lógica; fazer diferente. A punição freqüente de toda e qualquer desobediência impede o desenvolvimento de uma das atitudes mais essenciais para a aprendizagem nesse novo século: quebrar paradigmas, ousar, reconfigurar. É, no mínimo, contraditório termos que educar para a mudança, para a reconfiguração constante, reprimindo permanentemente a ousadia.
Só se ensina seguindo-se a fórmula: Início - Meio - Fim
- O hábito: Os alunos, às vezes, nos dão sinais de que já refletem a cerca de um fato; de que já possuem informações e formam algum juízo sobre uma determinada realidade. Esses sinais, no entanto, nem sempre são captados por nós professores, que insistimos em ignorá-los e "dar o conteúdo" seguindo a nossa tão conhecida fórmula: introdução - desenvolvimento - conclusão - fixação - avaliação. Esse hábito, muitas vezes, provoca uma sensação de desrespeito no aluno. Tudo o que ele traz não serve para nada. Nós repetimos, dentro de uma lógica pré-estabelecida, o conhecimento pronto do início ao fim. Nos falta habilidade de começarmos pelo meio, ou quem sabe pelo fim e assessorar o aluno para que ele construa o início-meio-fim à sua maneira.
- A crença: O aluno pode fazer algum comentário sobre o assunto, mas não sabe, ao certo, do que está falando. O conhecimento, para todos, possui uma mesma estrutura, predefinida. Não seguir a estrutura "lógica" do conhecimento impede o aluno de aprender. O aluno é incapaz de organizar o conhecimento por si só. É preciso que eu, professor, organize para ele.
- A reaprendizagem: Os alunos, muitas vezes, estão melhor informados do que imaginamos. Eles, em geral, têm mais tempo para interagir com a mídia, que está cada vez mais didática. O conhecimento não possui uma estrutura uniforme. A estrutura do processo de conhecer assemelha-se mais ao caos do que à lógica positivista. Dessa forma, o processo de aprendizagem individual não segue, necessariamente, uma estrutura lógica. O aluno pode e deve organizar o seu próprio conhecimento. Quando o professor organiza para ele, não permitindo que ele o faça, está dificultando o seu desenvolvimento. A aprendizagem é processo que ocorre independentemente da intenção de ensinar e, às vezes, para sorte de nossos alunos, apesar da nossa intenção de ensinar.
Avaliação é instrumento de manutenção do poder
- O hábito: Dizemos que a atividade será objeto de avaliação da aprendizagem como forma de imposição da nossa vontade. Fazemos essa declaração em forma de ameaça ou de vingança, quase que profetizando que os alunos terão dificuldades. Temos o hábito de usar a avaliação como instrumento de manutenção de nosso poder, na maioria das vezes apostando no fracasso dos alunos.
- A crença: Se não submetermos os alunos à tensão de uma avaliação, eles não dão o valor merecido ao processo de aprendizagem. Professor só é respeitado pelo seu poder de julgar, avaliar e atribuir notas. No fundo, o que importa é a nota.
- A reaprendizagem: Aprender é ato que precisa ser motivado. A aprendizagem é tão mais significativa, quanto maior motivo interno ela possui. O desafio é fazer nascer esse motivo dentro do aluno e não criá-lo fora dele. Aprender para tirar boa nota é motivo que se extingue ao se obter a nota requisitada e, na maioria das vezes, termina também aí o sentido do que foi aprendido. O professor conquista o real respeito dos alunos, quando consegue levá-los a manter vivos os seus motivos para aprender.
Indisciplina é sempre falta de respeito
- O hábito: Aluno, grupos de alunos ou turmas indisciplinadas são sempre encaradas como "rebeldes sem causa". Não se justifica nós, professores, estarmos ali, empenhados em ensinar e os alunos não estarem interessados no que temos a dizer ou a propor. A falta de interesse em aprender é sempre um ato indisciplinar que desrespeita, a priori, a figura do professor.
- A crença: Indisciplina é sempre sinal de desinteresse infundado. Os alunos têm que estar sempre dispostos a aprender o que temos para ensinar, independentemente do método que usemos, da linguagem que utilizemos ou da motivação que apresentemos. Indisciplina é, sempre, falta de respeito.
- A reaprendizagem: Indisciplina, geralmente, é sinal de desinteresse, sim. A questão é que nós, professores somos parte inseparável desse processo. Precisamos estudar a melhor maneira para que os alunos (ou pelo menos a maioria deles) se interessem por aprender. O aluno não tem a obrigação de estar naturalmente disposto a aprender. Precisamos considerar o nível de interesse do aluno ao planejarmos uma aula. Precisamos "ouvir" a indisciplina como um sinal de que a aula não vai bem e partirmos daí para criarmos uma cumplicidade com os alunos e mudarmos o rumo das coisas. Indisciplina, às vezes, é sinal de que estamos precisando mudar.
Por um professor que "não sabe".
Nós, professores, vimos, ao longo do tempo, baseando nossas ações em crenças rígidas, criadas ao longo da história e mantidas por nossa insegurança de mudar. Estamos diante da Era da Incerteza, com a função de prepararmos nossos alunos para a mudança e nos mantemos ainda arraigados à existência de verdades absolutas, de posturas inflexíveis e fundamentados em um modelo comportamental de aprendizagem. Sabemos que o melhor caminho para a mudança de hábitos é a mudança de crenças e mudar crenças é um processo doloroso, que, às vezes, parece nos tirar o chão.
Precisamos construir novo chão. Um chão que esteja dentro de nós, para que possamos pisá-lo por inteiro. Não há mais chão que seja seguro todo o tempo. Qualquer chão é acidentado, exige que fiquemos atentos a cada metro quadrado. Não há mais lugar para certezas absolutas. Precisamos ensinar as verdades relativas. Precisamos ensinar flexibilidade, convívio em grupo, habilidades de relação, ousadia, quebra de lógicas, prontidão para mudar. Como ensinarmos isso sem sermos isso? Como favorecer essa aprendizagem instrumental, usando instrumentos que não mais funcionam?
Para que possamos implementar de fato o "aprender a aprender" precisamos aprender a "desaprender" nosso modelo de ensinar. E não esqueça: desaprender e reaprender são tarefas que só têm êxito quando aliamos nossa inteligência e nossa vontade a serviço de nossa autodeterminação.
© 2007 - Revista Profissão Mestre. (http://www.profissaomestre.com.br/php/verMateria.php?cod=2001)
Cidades inteligente: as 10 mais
Há 11 anos
Nenhum comentário:
Postar um comentário